quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Ficção

Pelos últimos dez minutos em que João esteve olhando para fora, nenhuma alma viva passou na rua. A eletricidade havia sido cortada bruscamente em todo o bairro, de modo que a única fonte de luz lá fora era a lua, enorme e redonda. Dentro do apartamento, João contava com uma vela. Passara algum tempo se divertindo queimando coisas, já que não tinha nada para fazer com a luz cortada. Parou quando a tampinha da Coca-Cola já estava escorrendo viscosamente pela mesa, fazendo uma bagunça que ele não se atreveria a limpar até que a eletricidade voltasse.
Um gato qualquer miou, alguns cachorros da rua latiram, e ele, com um sobressalto, afastou-se da janela. Suspirou, alongou o pescoço e resolveu que deveria arranjar alguma coisa para fazer, já que não parecia que a luz ia voltar tão cedo.
Estivera estudando antes de tudo escurecer, e suas coisas ainda estavam espalhadas em cima da mesa. Puxou um caderno e uma lapiseira para perto da vela. Começou a fazer uns rabiscos, depois resolveu escrever um conto. Não sabia exatamente sobre o quê, apenas tinha se empolgado com a ideia de escrever a luz de vela, como naqueles filmes de época.
Uma personagem foi surgindo. Mulher jovem, com os cabelos pretos presos num coque bagunçado, vestindo moletom de domingo. Estava estirada no sofá da sala, com o notebook no colo; ela também escrevia um conto, que pretendia publicar em seu blog com o nome de Molly. Usava vários nomes diferentes ao assinar seus textos, e essa era apenas uma de suas esquisitices.
Ela costumava escrever mais antigamente, mas esse ano tinha pouquíssimo tempo para isso. Há cerca de seis meses, a preparação para o vestibular vinha lhe tomando basicamente todas as suas horas. Além disso, sua amiga estava há mais de um mês no hospital, correndo risco de vida. Toda a família dela lhe era querida, e todos estavam, obviamente, aflitos. Era horrível a sensação de não poder fazer nada a respeito. Nessas crises, Molly sempre era assolada por uma série de questões existenciais, sobre fé, religião, esperança e essas coisas. Isso tudo contribuía para que ficasse ainda mais deprimida, e somava-se com a culpa por estar desviando a atenção do que deveria ser sua prioridade: o vestibular. E ao mesmo tempo, não queria ser o tipo de pessoa que consegue ficar focada nos estudos, impassível enquanto seus amigos estão em profundas aflições. Tudo muito confuso.
Escrever sempre fora sua válvula de escape, mas há quase seis meses não conseguia encontrar tempo para sentar em frente ao computador e construir um texto do começo ao fim (embora, em sua mente, nunca deixasse de fazê-lo). Só que naquela tarde, a necessidade ficou muito grande. Mesmo não tendo tempo, mesmo fazendo isso no momento em que deveria estar fazendo qualquer outra coisa, naquela tarde ela simplesmente não conseguiu se controlar.
João ajeitou-se na cadeira, interessando pelas implicações psicológicas de sua personagem. Achou que deveria definir sobre o que ela estava escrevendo. Assim como ele, Molly não parecia ter muito planejamento – deixava as palavras lhe conduzirem. Nesse momento, contava a história de um personagem homônimo ao seu criador.
Há cerca de duas semanas, o seu João tinha sido chutado por uma namorada de longa data, com quem ele sempre acreditara que iria se casar. Ficara um tanto quanto desnorteado com essa mudança brusca em sua vida, e agora seu humor alternava-se entre um estado depressivo e um conformado. Por um lado, todos os seus objetivos haviam se dissolvido. Por outro, sempre poderia encontrar novos. Afinal de contas, era jovem. Bom, é claro que isso depende do ponto de referência. Mas não tinha pressa em formar uma família. Podia aproveitar para se dedicar a sua carreira, quem sabe viajar, conhecer aqueles países sobre os quais crescera ouvindo falar. No momento, não tinha muito dinheiro, mas oportunidades estavam aparecendo, então quem sabe? Claro que precisava antes comprar um carro - poderia dormir pelo menos uma hora a mais de manhã se pudesse ir de carro ao trabalho. Como fazia faculdade à noite, isso faria bastante diferença. Mas também tinha que lembrar que estava com o aluguel atrasado, então talvez o carro ficasse pra mais tarde. O carro, a viagem, a família...  parecia que a vida estava sempre sendo adiada.
Pensando nisso, na verdade, talvez nunca se casasse. Talvez fosse a hora errada para chegar a essas conclusões, mas não conseguia se ver casado com mais ninguém que não fosse ela. Nem conseguia se ver saindo com mais ninguém. Algo parecido com desespero criou um nó em sua garganta, e ele sacudiu a cabeça para espantar esses pensamentos. Um gato miou na rua, alguns cachorros latiram, e ele saiu da janela, sentou-se a mesa e puxou uma vela para perto do caderno de anotações. Começou a fazer alguns rabiscos.
Molly se inclinou por sobre o ombro de João para ver o que ele estava escrevendo. Ficou espantada ao ver que seu nome constava no texto. João ergueu a cabeça. Seus olhares se encontraram, e ambos sentiram um profundo arrepio na espinha.
Seus universos se embaraçaram, e não se sabia mais quem pertencia a quem.