segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Amor?

De um lado da rua vinha essa alma, que era colorida, bem delineada, sorridente e solitária, muito solitária, por opção e por medo. Ninguém sabia de suas motivações. Ninguém entendia o que lhe fazia sorrir e o que lhe fazia chorar, nem porque era feliz sozinha, nem porque queria continuar assim. Ninguém entendia, e por isso ela continuava solitária, e por isso todo mundo continuava sem entender.
Do outro lado da rua vinha outra alma, que era obscura, indefinida, melancólica e solitária, muito solitária, porque sempre procurava companhia e frustrava-se em nunca encontrá-la. Ninguém sabia de suas buscas. Ninguém entendia o que lhe fazia sofrer e o que lhe fazia feliz, nem porque era tão insegura, nem porque precisava tanto de outrem. Ninguém entendia, e por isso ela continuava solitária, e por isso todo mundo continuava sem entender.
Não é como se essas duas almas fossem as metades de uma laranja. Não, elas eram completas e complexas, cada uma com seu próprio timbre, sua própria doçura e seu próprio amargor. Elas eram inteiras e lotadas, e carregavam muita bagagem. Tanto que mal cabiam em si mesmas. E eram inteiras inclusive em sua própria solidão.
Mas quando elas se cruzaram, cada uma olhou para a outra e percebeu que essa outra também lhe enxergava. E o que elas viram foi compreensão. Elas não eram iguais, nem complementares, e certamente não eram perfeitas, mas se compreendiam mesmo em suas incompatibilidades, e talvez fossem as únicas capazes de se compreender.
Seria essa a resposta para sua solidão? Talvez. Mas o momento passou e cada uma seguiu seu caminho, e elas jamais coexistiram novamente.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Rotina

Minhas tardes eram todas iguais. Mal eu punha os pés na sala, já era recebida por aquele “bom dia!” super empolgado, aquele “tudo bem?” respondido no automático e aquele abraço apertado. Usualmente morrendo de sono, ia arrastando os pés para qualquer canto onde houvesse uma cadeira decente para chamar de minha.  Havia uma espécie de competição de arremesso de bolsas: ganhava quem primeiro pusesse a sua no lugar pretendido. A isso se seguia a competição de quem tem mais material para espalhar em volta e guardar o lugar dos amigos. Sempre igual.
Depois de garantido o lugar, migrava para a região onde o grupo estivesse aglomerado ou ia conversar com alguém isolado, dependendo do meu estado de espírito. Falávamos sobre os episódios das séries da semana. Trocávamos ideias sobre bons livros, bons filmes e boas músicas. Tentávamos obrigar os outros a lerem ou assistirem o que gostávamos, porque queríamos ter com quem comentar. Tínhamos opiniões diferentes sobre tudo. Sempre nos envolvíamos em discussões filosóficas, conversas inteligentes, conversas idiotas e brigas, muitas brigas, quase sempre desnecessárias. Às vezes tudo isso ao mesmo tempo, na mesma rodinha de conversa. Sempre aos gritos. Sempre terminando em piadas que seriam repetidas à exaustão pelos próximos anos independente da qualidade. Sempre igual.
Quando o professor se atrasava, ficávamos contando os segundos para podermos considerá-lo ausente e então fugíamos para o shopping, onde todo mundo emprestava dinheiro para todo mundo comprar comida, e eu muitas vezes gastava mais do que deveria. Nunca deixávamos de passar na livraria, caçando relíquias e comentando sobre as coisas que queríamos comprar. Nos espremíamos em volta das mesas redondas da praça de alimentação e passávamos horas falando sobre quase nada de útil. Sempre igual.
Ficávamos andando sem rumo nos intervalos, e às vezes íamos comprar chocolate só para ter o que fazer. Depois sentávamos em um cantinho aleatório e conversávamos sobre qualquer coisa todo o resto do tempo. Discutíamos muito, ríamos muito, falávamos de tudo e trocávamos muitas confidências. Sempre. 
Reuníamo-nos para discutir os trabalhos e tínhamos que nos esforçar para manter o foco. Eu levava broncas por ficar me afligindo, e distribuía broncas nos outros por não ficarem. Discutíamos incessantemente, pedíamos a opinião de todo mundo, perguntávamos para quem já tinha feito, e dificilmente chegávamos a um acordo que deixasse a todos contentes. Sempre.
Sempre havia com quem tirar dúvidas nos momentos de aflição, seja nas questões de física ou nas existenciais. Sempre havia com quem conversar sobre absolutamente qualquer coisa. Sempre havia alguém que entendia aquela piada bastante específica. Sempre.
E outra coisa que sempre fazíamos era reclamar. Reclamávamos da rotina. Reclamávamos dos professores. Reclamávamos dos trabalhos. Reclamávamos das pessoas. Reclamávamos da universidade. Reclamávamos. Dissemos um milhão de vezes que não víamos a hora de acabar.
Mas é fácil reclamar quando se tem tudo isso todos os dias. Quando temos que passar todas as tardes da semana durante mais de quatro anos ao lado das mesmas pessoas, fazendo praticamente a mesma coisa, em um curso que não gostamos, é mais do que natural ligar no modo automático e deixar de dar valor mesmo a parte boa daquilo que se vive diariamente.
O curso acabou, mas continuo vivendo uma rotina maluca e infeliz. A principal diferença entre a de agora e a de antes é que não tenho mais aquele grupo de pessoas com quem dividi-la. Posso ver, finalmente, que esses mais de quatro anos da minha vida presa na mesmice infinita não foram uma completa perda de tempo por causa das pessoas com quem os compartilhei.
Nunca gostei de finais, mas nesse caso, era para ser diferente. Mal podia esperar para me formar desde antes de chegar ao meio do curso. Minha aversão a encerramentos, no entanto, voltou com força total agora que atingi o objetivo. Me lembrei de que, todo fim, por mais esperado que seja, tem seu lado negativo. 
Esse lado negativo chama-se “Saudade”.

sábado, 30 de março de 2013

Hipertensão

Ficava o tempo todo remoendo as mesmas cenas em sua mente. Às vezes, evocava-as voluntariamente, para checar se os sentimentos que despertavam continuavam os mesmos, para tentar separá-los, diferenciá-los, estudá-los e entende-los. Outras vezes, no entanto, ocorria o oposto: de tanto se esforçar para pensar em outra coisa, as memórias irrompiam de seu inconsciente e não admitiam ser ignoradas, e ela, pega de surpresa, logo se perdia no turbilhão de sentimentos que vinham associados.
Não ajudava que o cheiro dele estivesse sempre tão presente em volta de si. Suas mãos, seus cabelos, seu casaco recendiam tanto aquele perfume que, se ela fechasse os olhos, poderia imaginar-se de novo abraçando-o, poderia sentir de novo a pressão tímida dos seus lábios sobre os dela... seus devaneios não tinham fim, e ela perdia-se imaginando as coisas que foram ou que poderiam ter sido.
Seu coração respondia a essas imagens acelerando e comprimindo seu peito, tornando quase difícil respirar. Seu estômago se revirava desconfortavelmente. E ela tentava desesperada tirar as cenas de sua cabeça.
Estaria doente? Talvez irremediavelmente perdida? Ou apenas sendo ridícula? Sentia, com todo o seu bom senso, que a última opção era a mais provável. Não sabia, porém, o que poderia ser feito a respeito.
Resolveu que faria o possível para ignorar tudo isso. Levantar-se-ia todos os dias de manhã, iria para aula, trabalharia, voltaria para a casa e iria dormir procurando sempre ocupar sua mente com frivolidades, de forma que a rotina acabasse afogando tudo de incompreensível e surpreendente que havia dentro de si, como já havia feito tantas vezes de forma involuntária. E quando aquelas perturbações afluíssem de novo, ela as enfiaria em um poço no fundo de sua mente e jogaria uma camada grossa de tédio por cima, mais dura e resistente que qualquer cimento, de forma a suprimi-las por completo.
Já estava há algumas semanas sendo bem sucedida neste plano suicida, quando aconteceu algo com que não estava contando em seu cronograma enfadonho. Mais breve do que esperava, e muito antes de estar preparada, foi topar justamente com seu queridíssimo agente etiológico no meio da rua.
No começo, parecia que ela conseguiria sair da situação com alguma dignidade. Ao bater os olhos nele, tudo o que sofreu foi um frio na barriga. Então ele sorriu. Um sorriso espontâneo, de pura alegria por encontra-la. Brilhante, aberto, convidativo, lindo de morrer.
Seu sangue ferveu. Seu estomago começou a se revirar feito roupa na centrífuga. Taquicardia, insuficiência respiratória, alucinações olfativas, memórias há muito reprimidas, tudo isso veio de uma só vez, levando-a a uma loucura momentânea. Lágrimas surgiram em seus olhos e logo evaporaram, pois seu rosto estava ardendo em febre. Suas pernas tremeram, e ela achou que fosse cair, mas no entanto ria, porque na verdade estava feliz como quase nunca tinha estado em sua vida.
E seu coração permanecia acelerado, se recusando acalmar-se, se recusando calar-se, sapateando de alegria e paixão em seu peito irrequieto como nunca se viu. E ele acelerou até ficar insuportável, insustentável, até simplesmente não caber mais em si e começar a inflar – sem nunca parar de dançar - até romper os ossos do tórax e saltar do peito, rumo a liberdade. E ela ainda teve tempo de sorrir de volta, um sorriso que rasgou sua face de orelha a orelha, antes de literalmente explodir de amor, espalhando suas entranhas apaixonadas pela rua, contaminando alegremente o mundo inteiro com sua doença.