sábado, 30 de março de 2013

Hipertensão

Ficava o tempo todo remoendo as mesmas cenas em sua mente. Às vezes, evocava-as voluntariamente, para checar se os sentimentos que despertavam continuavam os mesmos, para tentar separá-los, diferenciá-los, estudá-los e entende-los. Outras vezes, no entanto, ocorria o oposto: de tanto se esforçar para pensar em outra coisa, as memórias irrompiam de seu inconsciente e não admitiam ser ignoradas, e ela, pega de surpresa, logo se perdia no turbilhão de sentimentos que vinham associados.
Não ajudava que o cheiro dele estivesse sempre tão presente em volta de si. Suas mãos, seus cabelos, seu casaco recendiam tanto aquele perfume que, se ela fechasse os olhos, poderia imaginar-se de novo abraçando-o, poderia sentir de novo a pressão tímida dos seus lábios sobre os dela... seus devaneios não tinham fim, e ela perdia-se imaginando as coisas que foram ou que poderiam ter sido.
Seu coração respondia a essas imagens acelerando e comprimindo seu peito, tornando quase difícil respirar. Seu estômago se revirava desconfortavelmente. E ela tentava desesperada tirar as cenas de sua cabeça.
Estaria doente? Talvez irremediavelmente perdida? Ou apenas sendo ridícula? Sentia, com todo o seu bom senso, que a última opção era a mais provável. Não sabia, porém, o que poderia ser feito a respeito.
Resolveu que faria o possível para ignorar tudo isso. Levantar-se-ia todos os dias de manhã, iria para aula, trabalharia, voltaria para a casa e iria dormir procurando sempre ocupar sua mente com frivolidades, de forma que a rotina acabasse afogando tudo de incompreensível e surpreendente que havia dentro de si, como já havia feito tantas vezes de forma involuntária. E quando aquelas perturbações afluíssem de novo, ela as enfiaria em um poço no fundo de sua mente e jogaria uma camada grossa de tédio por cima, mais dura e resistente que qualquer cimento, de forma a suprimi-las por completo.
Já estava há algumas semanas sendo bem sucedida neste plano suicida, quando aconteceu algo com que não estava contando em seu cronograma enfadonho. Mais breve do que esperava, e muito antes de estar preparada, foi topar justamente com seu queridíssimo agente etiológico no meio da rua.
No começo, parecia que ela conseguiria sair da situação com alguma dignidade. Ao bater os olhos nele, tudo o que sofreu foi um frio na barriga. Então ele sorriu. Um sorriso espontâneo, de pura alegria por encontra-la. Brilhante, aberto, convidativo, lindo de morrer.
Seu sangue ferveu. Seu estomago começou a se revirar feito roupa na centrífuga. Taquicardia, insuficiência respiratória, alucinações olfativas, memórias há muito reprimidas, tudo isso veio de uma só vez, levando-a a uma loucura momentânea. Lágrimas surgiram em seus olhos e logo evaporaram, pois seu rosto estava ardendo em febre. Suas pernas tremeram, e ela achou que fosse cair, mas no entanto ria, porque na verdade estava feliz como quase nunca tinha estado em sua vida.
E seu coração permanecia acelerado, se recusando acalmar-se, se recusando calar-se, sapateando de alegria e paixão em seu peito irrequieto como nunca se viu. E ele acelerou até ficar insuportável, insustentável, até simplesmente não caber mais em si e começar a inflar – sem nunca parar de dançar - até romper os ossos do tórax e saltar do peito, rumo a liberdade. E ela ainda teve tempo de sorrir de volta, um sorriso que rasgou sua face de orelha a orelha, antes de literalmente explodir de amor, espalhando suas entranhas apaixonadas pela rua, contaminando alegremente o mundo inteiro com sua doença.