sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O Imperador

Inalcançável, após o Mar infinito, encontrava-se aquela linha mágica em que o céu se une a Terra, obscurecendo todas as questões mais profundas da humanidade.
Na outra extremidade do Oceano, estavam os olhos do menino: dois buracos negros brilhantes e curiosos, expressões de uma alma inquieta. Contemplavam a linha mágica com completo fascínio, sentindo que toda a sua vida finalmente faria sentido se apenas pudessem alcança-la. O menino não sabia que era impossível. Sabia, é claro, que não se podia chegar de navio, pois se correria o risco de cair infinitamente nas cataratas do fim do mundo. O jeito, ele matutava, era voar.
Quanto mais pensava nisso, mais desesperançado ficava, pois como poderia voar? E quanto mais desesperançado se sentia, mais tentador o lugar parecia. Tentou escapar do transe fechando os olhos. Encheu os pulmões com maresia, sentiu respingos salgados atingirem suas bochechas e deixou seu corpo relaxar. Quando estava mais tranquilo, abriu de novo os olhos e foi pego de surpresa pela força magnética do horizonte. Essa força fê-lo inclinar-se para frente de forma involuntária, e como estivera empoleirado em um promontório, caiu. Antes mesmo de perceber que estava no ar, viu se pairando sem ter nada abaixo de seus pés, como se não existisse gravidade. Entrou em pânico e começou a agitar os braços desesperado, dando uma ré e despencando dolorosamente no promontório. Tudo isso em um décimo de segundo.
Com o seu sistema inundado de adrenalina, ele tentava entender o que acontecera. Em sua mente infantil, não parecia provável que tivesse sido sua imaginação. Voltou a borda do promontório e olhou para baixo. Sentiu vertigem pensando na queda. Mas foi só fitar novamente o horizonte para o coração saltar cheio de esperança e um sorriso chegar aos seus olhos. Agora sabia que era capaz.
Assim, deixou-se cair novamente, tremendo de medo dos pés a cabeça, mas sem nunca tirar os olhos do além-mar. Aquela foi a força que lhe permitiu ficar no ar pelos primeiros instantes. No começo, agitava os braços de forma frenética e desesperada, sentindo-se cada vez mais pesado conforme se afastava da Terra. Nos primeiros minutos, foi aterrorizante e muito cansativo. Mas depois começou a pegar o jeito. Balançava os braços mais devagar, em um movimento rítmico. Logo, o vento deixou de ser seu inimigo e se tornou sua principal ferramenta. Seus braços transformaram-se em asas e todo o seu corpo ganhou penas exuberantes. Ele não tinha mais mãos e pés, mas não precisava. Agora, cheio de confiança, já conseguia dar cambalhotas e sentia-se capaz de olhar para baixo.
Não existiam fronteiras naquele mundo, nem propriedades, nem Estados, nem leis e nem guerras. Os outros pássaros a sua volta cantavam felizes, fazendo algazarra. Ele aprendeu a cantar também. Sentia-se feliz como um humano não era capaz de ser. A paisagem em volta de si era surreal. O mar estendia-se por toda a vida, e o Sol fazia as águas cintilantes se tornarem um verdadeiro espetáculo. Atrás, ficara todo o seu medo, e a frente estava o horizonte, indefinidamente inalcançável.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Honra Ordinária

Seus olhos se abrem. Não querem, mas se abrem.
Um suspiro involuntário manifesta a frustração de sua alma por ter o descanso interrompido. A mão direita tateia o criado-mudo, procurando cegamente desligar o berro matinal do espirito agourento que mora ali em cima. Por um momento, parece impossível se mexer mais que isso. No momento seguinte, o sentimento piora. O mundo inteiro está sentado em seu tórax, comprimindo-o sobre a cama, fazendo com que cada fibra de seu ser proteste contra o ato de levantar.
Mas há algo que o impede de ficar estático. Algo como o senso de honra de um cavaleiro arturiano. Sua honra não lhe permite permanecer deitado, tanto quanto a honra de Sir Lancelot não o permitiria entrar com vantagem em um combate.
Isso, no entanto, não é bem verdade, ou é? Sir Lancelot, afinal de contas, era o melhor cavaleiro do mundo, portanto sempre estaria com a vantagem. Assim como nosso guerreiro, apenas por ser quem é, não poderia agir de outra forma que não se pôr de pé e seguir a vida. Talvez não seja certo então falar em honra, já que não existe realmente uma escolha.
Contudo, quando ele enfim consegue se sentar e sente o Mundo sendo transferido do tórax para os ombros, a vontade de desistir é arrasadora. Opressiva. Esmagadora
Assim, não deixa de ter um quê de heroísmo o ato de finalmente pôr o peso do corpo sobre os pés no chão.
E então, heroicamente, ele levanta. Estoicamente, ele vive.
Deixa sua fortaleza arrastando os pés com mais ou menos o mesmo ânimo de um cadáver, pronto para passar por mais um dia que, como boa parte de todos os outros, não fará a menor diferença no resto de sua vida.