segunda-feira, 7 de julho de 2014

A Morte das Expectativas

Ela estava linda.
Ele não estava preparado para vê-la, ainda mais tão linda. O coração apertado, o nó na garganta, o fizeram perceber o quanto sentia falta dela. E ela, cruelmente indiferente, conversava e ria feliz em uma rodinha de amigos, já meio vermelha graças a duas capirinhas. Ele suspirou, sentindo que morreria pela oportunidade de fazê-la rir daquele jeito, e teve ciúmes de todos aqueles que tinham o direito de conversar e se divertir com ela sem que isso gerasse situações constrangedoras.
Sentiu-se tentado a se juntar na rodinha de amigos, mas conteve-se. Ele sabia que o tempo deles havia passado. Sabia que a havia magoado, e que ela não iria querer falar com ele. E percebeu, com o aperto no peito se intensificando, que ela seguira com sua vida e estava feliz, talvez até mais do que quando eles estavam juntos. Assim, fez o contrário do que queria seu impulso: sentou-se de costas para ela, numa tentativa de evitar ficar encarando-na, pediu um chopp e tentou genuinamente divertir-se, mas as gargalhadas vazias apenas ecoavam seu vazio interior.
Ele se enganara, no entanto, ao achar que ela não havia lhe notado. Ao contrário, ela bateu os olhos nele assim que ele chegara, pois estava virada para a porta. Seu estômago se revirou e suas pernas ficaram bambas enquanto ele abria um sorriso radiante para cumprimentar um amigo. Fingiu não notá-lo, porém, pois não queria demonstrar o quanto estava perturbada com sua presença. Mas por mais que se fizesse de indiferente, seu coração parecia uma escola de samba quando percebeu que ele a encarava. E ela ria forçadamente, de alguma piada que não tinha ouvido direito, enquanto se perdia em um conflito interno entre ir falar com ele ou esperar que ele viesse.
Mas, afinal de contas, ele a havia magoado, ele é quem devia vir.
Ela esperou. Ele não foi. Sentou-se de costas, como se quisesse mostrar o quão desimportante ela era. Ela mordeu os lábios, segurou as lágrimas e pediu mais uma caipirinha, tentando preencher com álcool o vazio que a expectativa lhe deixara.
Os dois voltaram para a casa aquela noite desiludidos, carregando nos ombros toda a carga de saudade deixada pelos bons momentos, oprimida pela mágoa que foi deixada pelos ruins, e ainda repleta de assuntos mal resolvidos. E assim, celebrou-se a vitória da covardia e da falsa indiferença sobre a sinceridade e a possibilidade de reconciliação, terminando com a morte de tudo de bom e de ruim que poderia ter sido. Ao menos naquela noite.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Amor?

De um lado da rua vinha essa alma, que era colorida, bem delineada, sorridente e solitária, muito solitária, por opção e por medo. Ninguém sabia de suas motivações. Ninguém entendia o que lhe fazia sorrir e o que lhe fazia chorar, nem porque era feliz sozinha, nem porque queria continuar assim. Ninguém entendia, e por isso ela continuava solitária, e por isso todo mundo continuava sem entender.
Do outro lado da rua vinha outra alma, que era obscura, indefinida, melancólica e solitária, muito solitária, porque sempre procurava companhia e frustrava-se em nunca encontrá-la. Ninguém sabia de suas buscas. Ninguém entendia o que lhe fazia sofrer e o que lhe fazia feliz, nem porque era tão insegura, nem porque precisava tanto de outrem. Ninguém entendia, e por isso ela continuava solitária, e por isso todo mundo continuava sem entender.
Não é como se essas duas almas fossem as metades de uma laranja. Não, elas eram completas e complexas, cada uma com seu próprio timbre, sua própria doçura e seu próprio amargor. Elas eram inteiras e lotadas, e carregavam muita bagagem. Tanto que mal cabiam em si mesmas. E eram inteiras inclusive em sua própria solidão.
Mas quando elas se cruzaram, cada uma olhou para a outra e percebeu que essa outra também lhe enxergava. E o que elas viram foi compreensão. Elas não eram iguais, nem complementares, e certamente não eram perfeitas, mas se compreendiam mesmo em suas incompatibilidades, e talvez fossem as únicas capazes de se compreender.
Seria essa a resposta para sua solidão? Talvez. Mas o momento passou e cada uma seguiu seu caminho, e elas jamais coexistiram novamente.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Rotina

Minhas tardes eram todas iguais. Mal eu punha os pés na sala, já era recebida por aquele “bom dia!” super empolgado, aquele “tudo bem?” respondido no automático e aquele abraço apertado. Usualmente morrendo de sono, ia arrastando os pés para qualquer canto onde houvesse uma cadeira decente para chamar de minha.  Havia uma espécie de competição de arremesso de bolsas: ganhava quem primeiro pusesse a sua no lugar pretendido. A isso se seguia a competição de quem tem mais material para espalhar em volta e guardar o lugar dos amigos. Sempre igual.
Depois de garantido o lugar, migrava para a região onde o grupo estivesse aglomerado ou ia conversar com alguém isolado, dependendo do meu estado de espírito. Falávamos sobre os episódios das séries da semana. Trocávamos ideias sobre bons livros, bons filmes e boas músicas. Tentávamos obrigar os outros a lerem ou assistirem o que gostávamos, porque queríamos ter com quem comentar. Tínhamos opiniões diferentes sobre tudo. Sempre nos envolvíamos em discussões filosóficas, conversas inteligentes, conversas idiotas e brigas, muitas brigas, quase sempre desnecessárias. Às vezes tudo isso ao mesmo tempo, na mesma rodinha de conversa. Sempre aos gritos. Sempre terminando em piadas que seriam repetidas à exaustão pelos próximos anos independente da qualidade. Sempre igual.
Quando o professor se atrasava, ficávamos contando os segundos para podermos considerá-lo ausente e então fugíamos para o shopping, onde todo mundo emprestava dinheiro para todo mundo comprar comida, e eu muitas vezes gastava mais do que deveria. Nunca deixávamos de passar na livraria, caçando relíquias e comentando sobre as coisas que queríamos comprar. Nos espremíamos em volta das mesas redondas da praça de alimentação e passávamos horas falando sobre quase nada de útil. Sempre igual.
Ficávamos andando sem rumo nos intervalos, e às vezes íamos comprar chocolate só para ter o que fazer. Depois sentávamos em um cantinho aleatório e conversávamos sobre qualquer coisa todo o resto do tempo. Discutíamos muito, ríamos muito, falávamos de tudo e trocávamos muitas confidências. Sempre. 
Reuníamo-nos para discutir os trabalhos e tínhamos que nos esforçar para manter o foco. Eu levava broncas por ficar me afligindo, e distribuía broncas nos outros por não ficarem. Discutíamos incessantemente, pedíamos a opinião de todo mundo, perguntávamos para quem já tinha feito, e dificilmente chegávamos a um acordo que deixasse a todos contentes. Sempre.
Sempre havia com quem tirar dúvidas nos momentos de aflição, seja nas questões de física ou nas existenciais. Sempre havia com quem conversar sobre absolutamente qualquer coisa. Sempre havia alguém que entendia aquela piada bastante específica. Sempre.
E outra coisa que sempre fazíamos era reclamar. Reclamávamos da rotina. Reclamávamos dos professores. Reclamávamos dos trabalhos. Reclamávamos das pessoas. Reclamávamos da universidade. Reclamávamos. Dissemos um milhão de vezes que não víamos a hora de acabar.
Mas é fácil reclamar quando se tem tudo isso todos os dias. Quando temos que passar todas as tardes da semana durante mais de quatro anos ao lado das mesmas pessoas, fazendo praticamente a mesma coisa, em um curso que não gostamos, é mais do que natural ligar no modo automático e deixar de dar valor mesmo a parte boa daquilo que se vive diariamente.
O curso acabou, mas continuo vivendo uma rotina maluca e infeliz. A principal diferença entre a de agora e a de antes é que não tenho mais aquele grupo de pessoas com quem dividi-la. Posso ver, finalmente, que esses mais de quatro anos da minha vida presa na mesmice infinita não foram uma completa perda de tempo por causa das pessoas com quem os compartilhei.
Nunca gostei de finais, mas nesse caso, era para ser diferente. Mal podia esperar para me formar desde antes de chegar ao meio do curso. Minha aversão a encerramentos, no entanto, voltou com força total agora que atingi o objetivo. Me lembrei de que, todo fim, por mais esperado que seja, tem seu lado negativo. 
Esse lado negativo chama-se “Saudade”.

sábado, 30 de março de 2013

Hipertensão

Ficava o tempo todo remoendo as mesmas cenas em sua mente. Às vezes, evocava-as voluntariamente, para checar se os sentimentos que despertavam continuavam os mesmos, para tentar separá-los, diferenciá-los, estudá-los e entende-los. Outras vezes, no entanto, ocorria o oposto: de tanto se esforçar para pensar em outra coisa, as memórias irrompiam de seu inconsciente e não admitiam ser ignoradas, e ela, pega de surpresa, logo se perdia no turbilhão de sentimentos que vinham associados.
Não ajudava que o cheiro dele estivesse sempre tão presente em volta de si. Suas mãos, seus cabelos, seu casaco recendiam tanto aquele perfume que, se ela fechasse os olhos, poderia imaginar-se de novo abraçando-o, poderia sentir de novo a pressão tímida dos seus lábios sobre os dela... seus devaneios não tinham fim, e ela perdia-se imaginando as coisas que foram ou que poderiam ter sido.
Seu coração respondia a essas imagens acelerando e comprimindo seu peito, tornando quase difícil respirar. Seu estômago se revirava desconfortavelmente. E ela tentava desesperada tirar as cenas de sua cabeça.
Estaria doente? Talvez irremediavelmente perdida? Ou apenas sendo ridícula? Sentia, com todo o seu bom senso, que a última opção era a mais provável. Não sabia, porém, o que poderia ser feito a respeito.
Resolveu que faria o possível para ignorar tudo isso. Levantar-se-ia todos os dias de manhã, iria para aula, trabalharia, voltaria para a casa e iria dormir procurando sempre ocupar sua mente com frivolidades, de forma que a rotina acabasse afogando tudo de incompreensível e surpreendente que havia dentro de si, como já havia feito tantas vezes de forma involuntária. E quando aquelas perturbações afluíssem de novo, ela as enfiaria em um poço no fundo de sua mente e jogaria uma camada grossa de tédio por cima, mais dura e resistente que qualquer cimento, de forma a suprimi-las por completo.
Já estava há algumas semanas sendo bem sucedida neste plano suicida, quando aconteceu algo com que não estava contando em seu cronograma enfadonho. Mais breve do que esperava, e muito antes de estar preparada, foi topar justamente com seu queridíssimo agente etiológico no meio da rua.
No começo, parecia que ela conseguiria sair da situação com alguma dignidade. Ao bater os olhos nele, tudo o que sofreu foi um frio na barriga. Então ele sorriu. Um sorriso espontâneo, de pura alegria por encontra-la. Brilhante, aberto, convidativo, lindo de morrer.
Seu sangue ferveu. Seu estomago começou a se revirar feito roupa na centrífuga. Taquicardia, insuficiência respiratória, alucinações olfativas, memórias há muito reprimidas, tudo isso veio de uma só vez, levando-a a uma loucura momentânea. Lágrimas surgiram em seus olhos e logo evaporaram, pois seu rosto estava ardendo em febre. Suas pernas tremeram, e ela achou que fosse cair, mas no entanto ria, porque na verdade estava feliz como quase nunca tinha estado em sua vida.
E seu coração permanecia acelerado, se recusando acalmar-se, se recusando calar-se, sapateando de alegria e paixão em seu peito irrequieto como nunca se viu. E ele acelerou até ficar insuportável, insustentável, até simplesmente não caber mais em si e começar a inflar – sem nunca parar de dançar - até romper os ossos do tórax e saltar do peito, rumo a liberdade. E ela ainda teve tempo de sorrir de volta, um sorriso que rasgou sua face de orelha a orelha, antes de literalmente explodir de amor, espalhando suas entranhas apaixonadas pela rua, contaminando alegremente o mundo inteiro com sua doença.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Pretérito Imperfeito

Oi,

Eu tenho pensado em você e acho que te devo desculpas. Ao repassar em minha mente algumas de nossas discussões corriqueiras, percebo que eu estava errada sobre muitas coisas. Lembro-me o quanto você reclamava do meu jeito desconfiado, cauteloso, controlador, incapaz de deixar as coisas simplesmente acontecerem. Incapaz de arriscar. Eu sempre tive a percepção de que a minha vida poderia ter sido totalmente diferente se eu não fosse desse jeito, mas você me fez sentir tudo o que eu estava perdendo. Se teria sido melhor agir de outra forma, só Deus sabe, mas ao menos - eu tenho certeza - haveria menos arrependimento.
Fui traída por minha própria natureza desde o início da nossa convivência. Eu dizia não quando sentia que talvez e talvez quando sentia que sim. Precisava de toda uma análise da situação antes de embarcar em cada avanço que você propunha. E você, sempre corajoso, sempre a minha frente, teve toda a paciência do mundo com meus passinhos de bebê.  Eu gostava de ir com calma. Gostava de esperar até ter certeza. Dizia a mim mesma que era o jeito mais sábio de agir. Confiava que, com tempo, as coisas se resolveriam. Naquela época, tínhamos todo o tempo do mundo...
E por minha causa, perdemos tanto tempo! Se ao menos eu tivesse sido um pouco mais negligente com o trabalho e menos com você, se tivesse te dado mais atenção, se tivesse te agradado mais, feito mais as suas vontades, cedido mais, discutido menos... soubesse eu o que ia acontecer, teria saído mais contigo, te ouvido mais, te abraçado por mais tempo... Poderia ter sido menos tímida ao corresponder às suas manifestações de carinho.  Poderia ter te dito sim desde o início. Poderia ter tido a coragem de me deixar envolver por todo aquele amor que você sentia por mim, assumindo assim o risco de te deixar realmente entrar na minha vida. Se não tivesse sido tão cautelosa, poderíamos ter tido uma grande história.
Agora eu não sei mais como te encontrar. Vou ao parque em que costumávamos caminhar esperando que você surja a qualquer momento detrás de uma árvore e me dê um susto. Fico parada em frente ao seu prédio, só para ter aquela sensação de que você está vindo me encontrar. Vou aos bares que a gente frequentava, sento nos nossos lugares de costume e fico te esperando... tenho inclusive bebido demais, porque você nunca aparece. Releio todos os seus bilhetes que tenho guardados, só para ouvir sua voz na minha cabeça. E as vezes, eu ainda te ligo, na esperança de que você me atenda.
Essa é minha única felicidade agora: ficar tentando te trazer de volta. Dói saber que o máximo que eu jamais vou conseguir é te evocar nessas lembranças cotidianas e dolorosas. Mas o que dói mais que tudo, aquela ferida que nunca deixa de se renovar, é o conhecimento de que você se foi sem jamais saber o que eu realmente sentia. Eu mesma, devido a essa fobia absurda disfarçada de cautela, só fui descobrir agora, quando todo o amor é em vão, que eu realmente o amava. 
Amo.


Perdoe-me por ser tão covarde,

Aquela que queria ter sido sua.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O Imperador

Inalcançável, após o Mar infinito, encontrava-se aquela linha mágica em que o céu se une a Terra, obscurecendo todas as questões mais profundas da humanidade.
Na outra extremidade do Oceano, estavam os olhos do menino: dois buracos negros brilhantes e curiosos, expressões de uma alma inquieta. Contemplavam a linha mágica com completo fascínio, sentindo que toda a sua vida finalmente faria sentido se apenas pudessem alcança-la. O menino não sabia que era impossível. Sabia, é claro, que não se podia chegar de navio, pois se correria o risco de cair infinitamente nas cataratas do fim do mundo. O jeito, ele matutava, era voar.
Quanto mais pensava nisso, mais desesperançado ficava, pois como poderia voar? E quanto mais desesperançado se sentia, mais tentador o lugar parecia. Tentou escapar do transe fechando os olhos. Encheu os pulmões com maresia, sentiu respingos salgados atingirem suas bochechas e deixou seu corpo relaxar. Quando estava mais tranquilo, abriu de novo os olhos e foi pego de surpresa pela força magnética do horizonte. Essa força fê-lo inclinar-se para frente de forma involuntária, e como estivera empoleirado em um promontório, caiu. Antes mesmo de perceber que estava no ar, viu se pairando sem ter nada abaixo de seus pés, como se não existisse gravidade. Entrou em pânico e começou a agitar os braços desesperado, dando uma ré e despencando dolorosamente no promontório. Tudo isso em um décimo de segundo.
Com o seu sistema inundado de adrenalina, ele tentava entender o que acontecera. Em sua mente infantil, não parecia provável que tivesse sido sua imaginação. Voltou a borda do promontório e olhou para baixo. Sentiu vertigem pensando na queda. Mas foi só fitar novamente o horizonte para o coração saltar cheio de esperança e um sorriso chegar aos seus olhos. Agora sabia que era capaz.
Assim, deixou-se cair novamente, tremendo de medo dos pés a cabeça, mas sem nunca tirar os olhos do além-mar. Aquela foi a força que lhe permitiu ficar no ar pelos primeiros instantes. No começo, agitava os braços de forma frenética e desesperada, sentindo-se cada vez mais pesado conforme se afastava da Terra. Nos primeiros minutos, foi aterrorizante e muito cansativo. Mas depois começou a pegar o jeito. Balançava os braços mais devagar, em um movimento rítmico. Logo, o vento deixou de ser seu inimigo e se tornou sua principal ferramenta. Seus braços transformaram-se em asas e todo o seu corpo ganhou penas exuberantes. Ele não tinha mais mãos e pés, mas não precisava. Agora, cheio de confiança, já conseguia dar cambalhotas e sentia-se capaz de olhar para baixo.
Não existiam fronteiras naquele mundo, nem propriedades, nem Estados, nem leis e nem guerras. Os outros pássaros a sua volta cantavam felizes, fazendo algazarra. Ele aprendeu a cantar também. Sentia-se feliz como um humano não era capaz de ser. A paisagem em volta de si era surreal. O mar estendia-se por toda a vida, e o Sol fazia as águas cintilantes se tornarem um verdadeiro espetáculo. Atrás, ficara todo o seu medo, e a frente estava o horizonte, indefinidamente inalcançável.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Honra Ordinária

Seus olhos se abrem. Não querem, mas se abrem.
Um suspiro involuntário manifesta a frustração de sua alma por ter o descanso interrompido. A mão direita tateia o criado-mudo, procurando cegamente desligar o berro matinal do espirito agourento que mora ali em cima. Por um momento, parece impossível se mexer mais que isso. No momento seguinte, o sentimento piora. O mundo inteiro está sentado em seu tórax, comprimindo-o sobre a cama, fazendo com que cada fibra de seu ser proteste contra o ato de levantar.
Mas há algo que o impede de ficar estático. Algo como o senso de honra de um cavaleiro arturiano. Sua honra não lhe permite permanecer deitado, tanto quanto a honra de Sir Lancelot não o permitiria entrar com vantagem em um combate.
Isso, no entanto, não é bem verdade, ou é? Sir Lancelot, afinal de contas, era o melhor cavaleiro do mundo, portanto sempre estaria com a vantagem. Assim como nosso guerreiro, apenas por ser quem é, não poderia agir de outra forma que não se pôr de pé e seguir a vida. Talvez não seja certo então falar em honra, já que não existe realmente uma escolha.
Contudo, quando ele enfim consegue se sentar e sente o Mundo sendo transferido do tórax para os ombros, a vontade de desistir é arrasadora. Opressiva. Esmagadora
Assim, não deixa de ter um quê de heroísmo o ato de finalmente pôr o peso do corpo sobre os pés no chão.
E então, heroicamente, ele levanta. Estoicamente, ele vive.
Deixa sua fortaleza arrastando os pés com mais ou menos o mesmo ânimo de um cadáver, pronto para passar por mais um dia que, como boa parte de todos os outros, não fará a menor diferença no resto de sua vida.